Ma nego, Soares
Canetas

Ma nego, Soares


Perambulando no Facebook hoje eu tive duas situações no mínimo conflitantes:

Primeiramente - e menos importante - ouvi a voz melodiosa e interessante de um cantor e poeta potiguar que, para variar (e para minha eterna vergonha... aff, odeio não conhecer a galera daqui), eu não conhecia: Arthur Soares, um cara que foi indicado ao Prêmior Hangar 2014. Como eu falei, a voz dele é bem suave e o arranjo da música que eu conheci é muito legal.

E aqui param os elogios.

Ouvi essa música Ma nega em uma página do Facebook e precisei ir atrás para ver se o que a galera do Coletivo Leila Diniz falara era verdade. Eis que encontrei essa letra aqui, para meu desprazer:

http://letras.mus.br/artur-soares/ma-nega/

Gente, sério, o que diabos é isso?

Para quem ainda não entendeu o motivo de tanta irritação, segue aqui um trecho tenso dessa canção:

As meninas do clipe são liiiiindas!

Nêga, se você me quiser
Eu boto seu nome na poesia
Eu largo a cachaça, a boemia
Trabalho, aposento o baralho
E lhe dou a garantia: 
Nêga, você vai gostar
O eu-lírico começa tentando barganhar, convencer a negra-mulher a ficar com ele... Afirma que fará o que ela quiser em troca de alguma coisa (o que será, né?). Afirma que largaria tudo em nome dela, com a garantia de que ela iria gostar. Lindo! Emocionante! Fofo!

SÁDICO. 

Olha a continuação, que coisa romântica e doce:

Nêga, eu vou te prender
Na senzala iorubá
E o que eu ensinar
Você vai ter que aprender
Porque eu vou te maltratar
Pretinha
Gente, para tudo! Juro que eu não consigo entender outra coisa além do que está explícito nesse trecho. O que esse homem tem na cabeça?
Ele vai prender uma negra numa senzala (alguém avisa a esse moço que a escravidão acabou, e que esse tipo de pensamento só reforça o racismo e a objetificação da mulher, please), e a pobre guria vai ser OBRIGADA  a aprender, pois o cara vai fazer isso, como? MALTRATANDO!

Nossa, só de lembrar das coisas que as escravas passavam na época mais sem esperança do Brasil eu já fico ansiosa. Que nojo.

/Ah, acabou de me surgir outra leitura para essa questão do maltrato da pretinha: a leitura sexual. A não ser que a guria seja uma Anastásia Cinza da vida, como diabos o ato sexual pode ser associado a um maltrato? Isso me soa como um estupro disfarçado, só pode./

Lembrei de quando estudava ACD em Letras e eu li o seguinte trecho do livro de Van Dijk:

?[...] os discursos dominantes não exercem sua influencia meramente fora do contexto.[...] preconceitos semelhantes podem ser formulados de maneiras bastante diferentes dependendo dessas e de outras estruturas do contexto [...]. Em outras palavras, a enorme variedade de discursos racistas na sociedade não apenas reflete as várias representações sociais subjacentes, mas [...] adapta-se a diferentes contextos de produção: quem disse o que, onde, quando e com que objetivos.? (p. 140)
E aí eu paro para pensar no que van Dijk fala: O que essa música é, além de uma forma de fomentar mais uma forma de discurso machista/racista na sociedade? E pior, e mais inquietante questionamento: Quem fala esse discurso e com que objetivos?

Um homem falando sobre a melhor maneira de tratar uma negra/mulher:

Pretinha (calada)
Danada (pretinha)
Malvada (danada)
Pretinha (pretinha)
Calada (doidinha)
Doidinha (calada)
Pretinha (pretinha)
Pretinha
Olha só que legal... A inha  deve permanecer calada por ser danada E malvada. CALADA!

Se recusar a ser tratada assim não pode! Oras, a moça nada mais é do que uma MULHER NEGRA! Se tá reclamando, segundo o próprio Artur, deve ser por falta do que fazer:

Imagem retirada do post do Coletivo Leila Diniz
Essa imagem afirma que Artur Soares não compreende seu papel enquanto formador de opinião. Além dessa falta de bom senso, ele ainda faz um comentário extremamente machista em relação à pessoa que fez a crítica educada e polida sobre sua música. De acordo com van Dijk:
 ?Elites [...] controlam as mais cruciais dimensões e decisões da vida cotidiana de imigrantes e minorias [...], exercem esse controle em grande parte falando ou escrevendo [...].? (p. 133)
Enfim, acho que já me irritei ( e me estendi) demais. Peço às pessoas que estão lendo esse texto que reflitam sobre o que elas estão sendo bombardeadas na mídia... Quanto tempo mais teremos que ser expostos a esse tipo de má cultura para aprendermos que racismo é idiotice?

REFERÊNCIA:


DIJK, Teun A. van. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2008. 



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